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Slow Medicine: a busca do resgate do tempo dedicado ao paciente

Dra. Carla Couto fala com exclusividade à Revista Afeto sobre a nova maneira da medicina enxergar o ser humano

“Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu. Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou; Tempo de matar, e tempo de curar; tempo de derrubar, e tempo de edificar.” Eclesiastes 3: 1.3

01 – Como surgiu o Slow Medicine? E qual é a proposta dele?
A expressão Slow Medicine foi utilizada pela primeira vez em 2002, pelo cardiologista italiano Alberto Dolara em artigo no Italian Heart Journal. Este foi o comentário do Dr Dolara: “Na prática clínica, hiperatividade é normalmente desnecessária. Adotar uma estratégia de ‘Slow Medicine’ pode ser mais recompensador em várias situações. Tal abordagem permitiria profissionais da saúde e, em particular, médicos e enfermeiras, a ter tempo suficiente de avaliar os problemas pessoais, familiares e sociais do paciente de forma extensiva, reduzir a ansiedade enquanto se espera por um diagnóstico que não é urgente e por procedimentos terapêuticos, avaliar novos métodos e tecnologias cuidadosamente, prevenir altas prematuras de hospitais e, finalmente, oferecer um suporte emocional adequado para um paciente terminal e suas famílias.”

A Itália é portanto o berço da filosofia Slow Medicine, onde não por coincidência, nasceu o movimento slow food: a alimentação feita com afeto, no lugar e pelo tempo necessário, voltada para a saúde e felicidade, em contraponto ao “fast food”. Em 2011 foi fundada a Slow Medicine italiana, envolvendo profissionais de saúde, pacientes e a sociedade geral, destinado a promover um cuidado adequado, amparado na escuta, diálogo e compartilhamento de decisões. Vem desde então ganhando adeptos em vários países.

Estes primeiros conceitos já sintetizam, o que hoje chamamos de um movimento filosófico, uma atitude, uma postura, uma busca por novos paradigmas de cuidado, compatíveis com o estágio de desenvolvimento humano e com a ética da vida. Não se trata de uma nova especialidade médica, nem de um simples retorno ao passado, nem de uma medicina alternativa, podendo ser aplicada a todas as áreas médicas, da atenção primária aos cuidados de alta tecnologia.

Inspirados nas ideias do Dr. Dennis McCullough, um dos pioneiros do movimento nos Estados Unidos, podemos entender Slow Medicine como uma filosofia na qual o bem estar do paciente é o foco dos cuidados médicos acima de tudo; como uma prática clínica que privilegia tempo e reflexão para o processo de tomada de decisões (sem pressa) , após conhecer e apreender a singularidade de cada paciente, família e grupos de suporte; e ainda como uma metáfora de equilíbrio, harmonia, onde oferecemos às pessoas a tecnologia racional justa às suas necessidades, e aceitas em sua fase de vida. Desde o princípio percebemos que para o cuidado de idosos, nem sempre a ênfase na alta tecnologia, na rapidez e em protocolos rígidos é o melhor. Nem sempre fazer mais é fazer melhor…e temos evidências suficientes de que o uso abusivo e “descabido” dos avanços tecnológicos, tanto em sua vertente diagnóstica como terapêutica, costuma gerar danos individuais e coletivos, aumentar os custos e dificultar o acesso aos sistemas de saúde.

Em português, podemos traduzir Slow Medicine, como a medicina sem pressa, um resgate a uma prática centrada na pessoa, mais humana, abrigando várias outras iniciativas que confluem para a medicina sóbria, respeitosa e justa: a estratégia choosing wisely, medicina narrativa, medicina integrativa, os estudos sobre a empatia médica, os cuidados paliativos.

A Slow Medicine fundamenta-se na máxima menos é mais. Busca melhorar a qualidade de vida dos pacientes, em especial na maturidade tardia, sem comprometer suas famílias financeira ou emocionalmente. Além disso, o movimento coloca como protagonista, o paciente, convidado a conversar de forma transparente com seu médico, esclarecendo dúvidas e compreendendo a natureza de seu processo de adoecimento e de tratamento, assumindo junto à equipe a responsabilidade por sua saúde. Não estamos falando de temas novos. Muitos profissionais por princípios pessoais ou formação sempre praticaram a Slow Medicine. Porém, entendemos que o resgate desses valores se faz necessário hoje.

Um dos responsáveis pelo florescimento da Slow Medicine no Brasil, Dr Dario Birolini, em livre tradução de artigo da Sociedade Italiana de Slow Medicine, conclui que: “a slow medicine tem uma visão sistêmica, de enredo; em nenhum momento possui uma visão linear, voltada para a relação causa/efeito. Embora possíveis e, às vezes, necessários, os caminhos lineares constituem-se em simplificações que nunca devem permitir que se esqueça a complexidade do desafio; não propõe verdades; de fato, é a partir das dúvidas que aumentam os conhecimentos; quem já acredita saber tudo é, por definição, um “fast”.”

02 – Você acredita que os médicos vão aderir a esse novo modo de ver a medicina?
Acredito na perspectiva de que o movimento está para além do domínio da medicina. É um movimento que nasce de uma demanda social, como nasceu o slow food e tantos outros identificados como “slow”. É o desejo de um cuidado próximo, pessoal, humanizado que podemos ouvir claramente hoje, na mídia, nas redes sociais, nas conversas em família. O paciente reclama com maior frequência da forma como é tratado, recebido, ouvido, de falhas técnicas. O paciente tem reconhecido mais claramente efeitos colaterais danosos de tratamentos que não compreendia bem antes de receber. Então em algum momento, essa percepção vai atingir mais e mais médicos. Este reconhecimento já está nas escolas médicas, que adotam em seus currículos disciplinas voltadas para o que chamamos de humanidades médicas. Está também nas entidades médicas oficiais como mostra esta iniciativa da Associação Médica de Cascavel. Esperamos que a Slow Medicine viralize, contaminando toda a sociedade, pois entendemos que é um bem absoluto direcionado ao interesse da qualidade de vida e saúde do ser humano.

Dr. Carla Couto

03 – Na sua opinião, como médica, vai chegar um momento em que médicos que se tornarem adeptos da Slow Medicine poderão entrar em uma nova categoria em que o paciente pode optar por eles?
Com certeza. Iremos todos nós, enquanto pacientes, buscar o médico que se comporte como um ser humano igual, que escute, que olhe nos olhos antes de prescrever algo, que seja sincero quando não tiver certeza do melhor caminho. E que na incerteza espere ao lado do paciente, pois muitos dos problemas agudos de saúde se resolvem com o tempo. Ou ainda ficam mais claros com o tempo. Muitas das intervenções precoces causam problemas ao paciente. Da mesma forma, estratégias de prevenção primária (para pessoas saudáveis) precisam ser objeto de reflexão quanto a sua eficácia, efetividade, especificidade e potencial danoso às pessoas que se encontram vivendo sua vida bem. Diante de um teste de rastreio alterado, passam a ser identificadas como “doentes”. É necessário refletir sobre o processo que se desencadeia após intervenções e rastreios, o que traz a cada paciente cada novo diagnóstico. O que pensa um paciente quando o médico lhe diz que encontrou um cisto hepático em exame de imagem?

04 – Dra. Carla, podemos dizer que a Slow Medicine recupera o tempo em que o médico ouvia mais o paciente?
A dimensão TEMPO é o pilar fundamental da filosofia slow. Tempo para ouvir de verdade, escutar com o coração, observar reações, a linguagem corporal, compreender a essência singular de cada paciente. É o primeiro princípio slow, e se relaciona com outro princípio que é o aprimoramento constante da relação médico-paciente, com base dialógica, horizontal, onde o médico reconhece que o paciente tem seu saber, sobre si mesmo, sobre suas escolhas, sobre sua visão do final da vida, sobre seu limite de dor e aceitação de tratamentos. Todo médico é um educador, que deve praticar a educação centrada no outro, no paciente, e não no poder médico histórico, ou em seu processo de trabalho, ou em interesses mercantilistas.

O tempo e a relação médico paciente respeitosa irão possibilitar os outros dois pilares do movimento: compartilhamento de decisões (método clínico centrado no paciente) e o uso racional de tecnologias.

05- Dra. Carla, o que te levou a escrever sobre filmes? E que inspiração te move quando o faz?
A paixão pelo cinema vem da infância. Meus pais eram apreciadores de um bom filme, ainda que com estilos diversos. Vivemos a chegada da televisão em nossas casas, e ver filmes até de madrugada, em especial com nossa mãe, era o melhor programa. Cresci numa cidade cultural, Santa Maria, no RS, onde por muitos anos tivemos três cinemas. E na juventude, na universidade, ir ao cinema era muito importante para nosso desenvolvimento como pessoas.

Acredito que cada um tem uma arte que lhe fala ao coração. A arte vem para explicar, dar sentido as tantas experiências humanas complexas. Ela vem em nosso socorro, para amparar, refletir e confortar. E o cinema sempre foi assim para mim. Uma narrativa que ensina. Por muitos anos usei filmes para ministrar aulas em cursos médicos e de especialização. É a arte como instrumento de educação e sensibilização, que gerou o nascimento de uma área de conhecimento chamada Medicina Narrativa. Também amo a música, a fotografia e o teatro, são narrativas que se complementam. Não há sociedade saudável sem a expressão artística.

Minha inspiração acredito ser uma permanente curiosidade sobre a experiência humana e sobre as possibilidades de vivermos em maior harmonia. Busco entender percepções de infância e indagações que só cresceram quando passei a escutar pessoas diariamente. O cinema é um laboratório para mim, para além de entretenimento. Quando saio do mesmo jeito que entrei, da sala de cinema, não foi um bom filme…

06 – Quando você escreveu sobre o filme brasileiro “Monte Carmel”, você estava em Stratford, na Inglaterra, cenário coberto de neve, absolutamente oposto aos trópicos brasileiros. Como você consegue se transportar a um cenário fictício e fazer parte dele para depois escrever sobre?
Cada filme tem um canal de expressão. No caso de Monte Carmel foi a
trilha sonora. Dirijo diariamente na Rodovia Fernão Dias, um bom exemplo do inferno que criamos para nós mesmos. Passei a ouvir a música de Monte Carmel no carro, e mesmo no caos do trânsito, era transportada para este lugar. Um lugar de paz, de encontro, de solidariedade. A neve da silenciosa e pacífica Stratford só contribuiu para adentrar ainda mais este lugar, que como diz uma das canções, na verdade, está dentro de nós.

07 – Em que países a Slow Medicine está mais presente?
Como dissemos, o movimento é muito presente na Itália, onde foram lançados os três princípios chaves da Slow Medicine: Sobria, Rispettosa, Giusta (Sóbria, Respeitosa e Justa). Atualmente, a Sociedade Italiana Slow Medicine organiza e aprova cursos de pós-graduação e sessões de treinamentos por todo o país, desenvolvendo protocolos médicos como uma alternativa à “Fast Medicine”, em defesa da pesquisa baseada em evidências.

Nos Estados Unidos da América, não existe uma organização Slow Medicine reconhecida, porém alguns dos mais importantes autores estão nesse país. Indiscutivelmente, o patriarca da Slow Medicine norte americana é o Dr Dennis McCullough, geriatra e professor em Dartmouth College, já falecido. Seu best seller “My Mother, your Mother” descreve como o sistema de saúde nos Estados Unidos normalmente conduz tratamentos excessivos para pessoas em final de vida. Utiliza como exemplo sua história de vida, cuidando de sua mãe idosa, e desejando a todas as mães, dignidade, conforto e afeto até o fim. E atribuindo as equipes de saúde um papel importante nesta jornada.

Outra importante autora americana é a Dra. Victoria Sweet, Professora Clínica Associada à Universidade de Medicina da Califórnia, em São Francisco, e historiadora com um Ph.D. em História. Ela clinicou por vinte anos no Hospital Laguna Honda, em São Francisco, onde começou a escrever o livro: God’s Hotel: A Doctor, a Hospital, and a Pilgrimage to the Heart of Medicine (Riverhead, 2012), onde aponta evidências – em histórias sobre seus pacientes e o hospital – de algumas ideias rigorosamente novas sobre medicina e cuidados em saúde para os parâmetros americanos até então.

A terceira autora que infuencia a Slow Medicine é a jornalista Katy Butler. Em 2013 ela publicou Knocking on Heaven’s Door, em busca de entender porque os médicos se recusavam a desligar o marcapasso do coração de seu pai, com 84 anos, após um acidente vascular cerebral com sequelas de demência, privando-o de uma morte natural. É um exemplo de que o movimento vai muito além da medicina e da academia, falando a todos que refletem sobre qualidade de vida e morte.

Por fim o Dr Ladd Bauer, médico, é o quarto fundador americano da Slow Medicine. Em 2008, ele publicou o primeiro artigo sobre Slow Medicine em inglês. Juntos, os quatro autores exploraram a questão do excesso de tratamentos, especialmente quando as pessoas estão próximas do fim da vida, num sistema de saúde coerente com o capitalismo agressivo, voltado para o excesso de intervenções e para a medicina defensiva.

“The Updates in Slow Medicine” é uma importante plataforma virtual americana, que oferece uma perspectiva mais ampla da Slow Medicine, trazendo uma série de discussões entre estudantes, residentes e funcionários no Cambridge Health Alliance e na Escola de Medicina de Harvard.

Também na Holanda há um movimento crescente, liderado por Dick Kister, médico clínico geral, que planejou um workshop sobre “não fazer”, em oposição ao reflexo médico Pavloviano de intervir sempre diante de um paciente (com frequência é permitido observar mais, esperar e compartilhar decisões). Os representantes dos três países se encontraram em Turim, em 2015, onde aconteceu a primeira reunião internacional da Slow Medicine.

Integrantes do Slow Medicine Brasil

08 – E no Brasil, qual é a sua abrangência?
Em 2014, a Revista Veja publicou uma entrevista com o Dr Marco Bobbio, e este foi o início da Slow Medicine no Brasil. Bobbio veio lançar seu livro “O Doente Imaginado” (esgotado logo após o lançamento), na qual fala de suas concepções acerca da medicina atual e aborda questões relativas ao uso abusivo da tecnologia, ao empobrecimento do relacionamento médico-paciente, à necessidade de particularização do cuidado de acordo com as características individuais.

Logo depois, uma série de palestras se sucederam no Brasil, e foi o que inspirou os médicos José Carlos Aquino de Campos Velho (Geriatra e Clínico Geral), Dario Birolini (Professor em Cirurgia), e Kazusei Akiyama (Clínico Geral) a estabelecerem uma ramificação brasileira da Slow Medicine, com sede em São Paulo. Os três fundaram em 2015, o site brasileiro Slow Medicine (www.slowmedicine.com.br), hoje um dos maiores veículos de comunicação da Slow Medicine no mundo, em quantidade, atualização e qualidade de conteúdo. O grupo cresceu e hoje congrega vários profissionais médicos e de outras áreas, em boa parte ligados a educação médica, em vários estados do país.

O site contém uma rica variedade de conteúdos traduzidos de fontes Slow Medicine italianas, americanas e holandesas, e o grupo tem participado de encontros e palestras junto a entidade médicas, associações e escolas médicas. Deste modo, a abordagem brasileira é a combinação da americana, que foca principalmente em geriatria e cuidado paliativo nos últimos estágios da vida, e a italiana, que possui um escopo mais amplo. Em 2018 aconteceu em São Paulo o I Encontro Brasileiro de Slow Medicine e acontecerá em 21 de setembro próximo o II Encontro, também em São Paulo.

09 – Em outubro, você vai estar em Cascavel para falar sobre Slow Medicine no Encontro científico comemorativo aos cinquenta anos da AMC (Associação Médica de Cascavel). Qual é a sua expectativa?
Espero ser capaz de transmitir algo em que, nós do grupo Slow Medicine brasileiro, acreditamos profundamente: de que somos capazes de praticar uma medicina melhor para todos, médicos e pacientes, se ampliarmos e solidificarmos os valores éticos de relacionamento medico paciente, onde atuaremos racionalmente a partir de evidências científicas aliadas a sensibilidade e interesse acima de tudo pelo ser humano.

Faço parte de uma família com muitos médicos, um deles o Drº Márcio
Eduardo Couto, que certamente os leitores conhecem bem. Uma das razões de termos optado pela Medicina, é o profundo respeito que meus pais sempre demonstraram pela profissão. Desde bem pequenos ouvíamos nossa mãe dizer: “quando o Drº Jacob (nosso médico de família em Cruz Alta) entra pela porta da casa, respiro aliviada, e sinto que tudo vai dar certo”. Quisemos ser então esse tipo de pessoa: que traz em si o alívio, o conforto, as vezes a cura. É uma vivência que justifica nossa dedicação à profissão médica, e que penso que perdemos um pouco ao longo dos anos, apressados por sistemas de saúde desiguais, pelo incremento de tecnologias duras, pela necessidade de encarnar uma representação profissional de alto status social. Espero assim levar essa reflexão aos colegas da região de Cascavel, com muito carinho, e com a honra de representar o movimento Slow Medicine.

Para saber mais:
www.slowmedicine.com.br
www.facebook.com/slowmedicinebrasil1
www.instagram.com/slowmedicinebrasil

Carla Rosane Ouriques Couto
Médica formada pela UFSM (1984). Especialista em Pediatria, Medicina de Família e Comunidade, Saúde Pública, Saúde do Trabalhador, Educação Médica (FAIMER Brasil), Gerenciamento de Unidades Básicas e Terapia de Família. Mestre em Psicologia Social. Ex-docente de escolas médicas: UFMS, PUC GO, FCMPB, UNIFENAS e UNASUS SP. Perita Médica Federal.

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